Por Maria Fernanda Gonçalves
Coreógrafa há 33 anos, a portuguesa Olga Roriz sempre ouviu de colegas do meio artístico que deveria criar sua própria versão para A sagração da primavera, obra eternizada por Igor Stravinsky (1882-1971) e Vaslav Nijinski (1890-1950), que estreou em 1913, em Paris.
Depois de muito relutar, acreditando que o balé já havia sido consagrado, tanto no original, quanto pelas mãos de Pina Bausch (1940-2009), que fez sua versão, em 1975, a diretora estreou, em 2010, sua recriação, com a companhia que leva seu nome, no Centro Cultural de Belém, Lisboa.
No trabalho, é possível ver a visão de mundo de Olga. Ela coloca a protagonista Eleita, por exemplo, na posição de mulher independente e forte, uma alusão ao possível papel das mulheres dos dias de hoje. Em junho, de 21 a 24, o público curitibano terá a oportunidade de conhecer a remontagem de A sagração da primavera, para o Balé Teatro Guaíra, companhia estatal do Paraná. A vinda do Olga ao País deve-se ao convite de Andréa Sério, que deixou a direção da companhia paranaense em fevereiro. O espetáculo terá o acompanhamento da Orquestra Sinfônica do Paraná, sob a regência do maestro titular Osvaldo Ferreira, no Grande Auditório.
Olga coloca a protagonista Eleita na posição de mulher independente e forte, uma alusão ao possível papel das mulheres dos dias de hoje. Leia, a seguir, entrevista de Olga, em que ela fala da recriação em Portugal e também da remontagem, no Brasil, com bailarinos nacionais.
Qual foi seu primeiro contato com A sagração?
O tempo parece não ter passado desde que, ainda jovem, interpretei o papel da Eleita, do coreógrafo Joseph Russillo, no Ballet Gulbenkian. Foi muito forte na época, uma peça que musicalmente me impressionou, mas coreograficamente não me impressionou tanto. Eu era estagiária e fiquei feliz, era um privilégio. Foi minha primeira e última experiência com a peça, assim mesmo, física.
O que a inspirou a mudar de ideia e criar a sua Sagração?
Colegas da dança foram me convencendo de que eu poderia fazer uma coisa muito minha. Comecei a ouvir a música, apesar de ser uma pessoa que tem uma relação com a música muito distante. Não escolho as músicas para fazer coreografias, mas faço as coreografias e escolho as músicas depois. Na Sagração, o essencial é a música e o roteiro escrito pelo Stravinski. Ambos me serviam plenamente para dizer o que eu queria. Portanto, o que fiz foi ler uma série de coisas sobre A sagração, do ponto de vista do coreógrafo, e ler muito bem o roteiro. Também ouvir a peça... não muitas vezes. Gosto de ter uma sensação e deixar que fique na memória e um pouco colada à pele. Aos poucos, fui aceitando que eventualmente seria bom fazer uma Sagração. O fascínio e o respeito pela partitura foram determinantes para a minha interpretação, construção dramatúrgica e coreográfica da peça.
Como é a estrutura coreográfica da sua obra?
Concedi ao personagem do Sábio um protagonismo invulgar, sendo ele que inicia a peça. Ainda em silêncio e durante todo o prelúdio, ele habita o espaço solitário e vazio traçando nos seus gestos um percurso de premonição, antecipação e preparação. Eu dou um lugar primordial a ele, num solo, num agarrar do espaço, numa contenção de energia e uma destruição ao mesmo tempo, no qual ele vem a preparar o terreno para o ritual. Distanciando-se drasticamente do conceito original, a personagem da Eleita não é tratada como uma vítima no sentido dramático da questão. A minha Eleita sente-se uma privilegiada e quer dançar até sucumbir. Em nenhum momento sente-se obrigada ou castigada, nem o medo a invade. Ela expõe sua força e sua energia vitais lutando cegamente contra o cansaço, não quer ter nenhuma influência do exterior, não quer que nenhuma mulher a substitua, nem que nenhum homem a ajude, ela quer ser independente, cheia de força, comparável à mulher de hoje.
Não há grandes filosofias. É uma peça feminina, por causa desta mulher, cheia de paixão, de vitalidade e de uma cumplicidade de grupo grande, em que as aspirações em uníssono são algo muito forte. Ninguém sai, ninguém entra, portanto quando entra não sai mais. Mesmo quando há protagonismo, tanto da Eleita quanto do Sábio, todos estão ao redor vendo e ouvindo o que dizem.
Como está sendo o trabalho da remontagem com o Balé Teatro Guaíra?
Tive que fazer audição. Tinha uma ideia de quem escolher para o Sábio e a Eleita (serão interpretados por André Neri e Ane Adade). Mas não tinha escolhido o grupo de onze mulheres e dez homens. É uma dificuldade normal. E o tempo, muito pouco tempo – duas semanas – para montar A sagração, uma peça muito complexa musicalmente. E depois muito nova para eles fisicamente. Felizmente tenho minha ensaiadora, Silvia Rijmer, que dá aulas, ajuda a prepará-los física e tecnicamente. Não é fácil entrar numa companhia que não tenha relação com a linguagem do coreógrafo e não é de um dia para o outro que se consegue fazer. Acredito que eles vãodançar muito bem. São profissionais e estão com essas dificuldades de como fazer meus movimentos e os entender bem, e conseguir em curto espaço de tempo pôr em seu corpo uma técnica muito diferente.
Neste momento, eles têm uma força de vontade enorme, uma paixão pelo que fazem, boa energia. Diria que a cada dia entram mais na Sagração. O papel de Eleita é mais complicado, pois tem que ser uma mulher que esteja completamente conectada com minha linguagem. Tem que se ter uma força da natureza nesse papel. Além de compreender bem o que está dançando, tem que sobrepor isso e trazer sua personalidade, sua energia, tudo o que tem lá dentro emocionalmente. Para tanto, é preciso passar uma série de obstáculos técnicos. Depois disso, vai poder se desnudar completamente e, no caso do André, a mesma coisa. Minhas peças não são só físicas, têm muita vivência, muita criatividade. Pode-se ser muito inteligente, mas não ter ainda a matéria para poder trabalhar uma peça destas.
Como um bailarino/artista te inspira?
Eu trabalho sobre a pessoa, mais do que sobre o bailarino. Na minha companhia, os artistas são escolhidos pelo que são como pessoas e não pelo que são como bailarinos. Se eu consigo juntar as duas coisas é ótimo, sobretudo no lado criativo e na qualidade do movimento. Se há um conhecimento do corpo, esse é um material para poder comunicar aquilo que se quer. Uma pessoa sem vivências e sem cultura geral hoje em dia já não interessa a um coreógrafo. Eventualmente, é por isso que a maior parte das pessoas que trabalham em minha companhia tem mais de mais de 35 anos. Quantas vezes dei referências a bailarinos que não sabiam do que estava falando. Gosto de trabalhar com os problemas, os fantasmas, os medos, tudo o que o ser humano tem é tema de trabalho, e não o pezinho, a mãozinha e o bracinho.
"Colegas da dança foram me convencendo de que eu poderia fazer um balé muito meu"Eu inspiro a mim mesma, mas as pessoas fazem parte de mim. Elas me inspiram também porque já estão dentro de mim. A memória e as vivências estão aqui. Portanto, elas fazem parte do meu universo criativo.
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